Contribuições

2020, Lisboa, outubro, 27

 

Carta imaginária escrita por Garcia de Orta aos seus colaboradores e amigos, informando-os do recebimento do privilégio, assinado pelo Conde Vice-rei, em Goa, a 5 de novembro de 1562, de como só os impressores por ele autorizados poderiam imprimir a nova obra que se estava aprontando na tipografia de Iohanne de Emden, sobre os simples e as drogas orientais utilizados em mezinhas e outras
coisas curiosas. Foi escrivão João Alves Dias.

 

Eu Garcia de Orta a vós Ruano e Dimas Bosque saúde.

 

Dos amigos todas as coisas são comuns e, assim, têm os amigos licença para emendar as coisas dos que forem seus. Foi dentro deste princípio que se desencovou a verdade não sabida de todos e se escreveu este livro.

 

Sabede que vos estou grato e que vos quero dizer, em primeiro lugar, a grande mercê que me fazeis nisso. Mercê por toda a ajuda que me deram na emenda e na feitura dos nossos Colóquios. Digo nossos porque um Colóquio presume a interveniência de diferentes pessoas,
como neste caso aconteceu. Na verdade, esta obra é uma obra a três mãos, dado que as vossas, em muitos e muitos momentos, substituíram a força e a agilidade que as minhas, hoje, quase não têm, assim como a clareza que falta ao meu olhar. Todos vós sabeis que tanto a minha doença, como a minha idade (para não falar em outros desenganos ou vicissitudes da vida) me foram debilitando as forças, imprescindíveis para congregar este trabalho que nunca mais termina, dados os erros a corrigir. Já depois de impressas as suas folhas, e depois de tantas emendas feitas, ainda temos de assinalar, numa lista, os erros da impressão, que são muitos, dado que alguns deles podem mudar o entendimento.

 

Confesso que, sem a vossa ajuda, talvez não tivesse tido a coragem suficiente para levar em frente esse meu sonho de juventude: corrigir, documentar e aumentar a obra que nos foi ensinada durante a nossa aprendizagem em Salamanca, no que à Matéria Médica, com origem
na Índia, diz respeito. Informar a obra que nos foi legada a partir de Dioscórides e aperfeiçoada por tantos, tantos outros, até aos nossos dias. É que se sabe mais em um dia agora pelos portugueses do que se sabia em cem anos pelos romanos.

 

Sabeis, tão bem como eu, que foram muitos outros os livros presentes na raiz deste nosso trabalho e outros que eu próprio, infelizmente, não consegui ler, mas que vós outros me recordaram e me deram a conhecer.

 

É evidente, e todos vós o melhor sabeis que ninguém, que uma obra de estudo nunca está terminada. É mais um pormenor que nos escapa, que nos confunde, ou – o que ainda é pior – um pormenor em que temos de desmentir aquilo que outros afirmam como se fosse verdade,
mas que não passa de mentira. Mentira que tantas vezes repetida até parece verdade. Mas a ignorância continua nos nossos dias e encontra-se escrita em um escritor moderno muito lido e muito douto. Ainda as temos de desmentir… gastando forças que antes se deveriam poupar para
outros trabalhos.

 

Nem sempre estivemos de acordo ao longo desta obra; já depois de composta e impressa chegou, pela tua mão, Dimas, a esta parte do nosso reino, o conhecimento do que escrevera Gaspar Barreiros acerca da origem do nome de Badajoz. Ao contrário do que alguns possam vir
a defender no futuro, eu não vi o livro, nem tão pouco o conseguiria ler, como sabeis. Ousaste pois tu, Dimas, pensar que eu estava errado nos meus conhecimentos!… recordo-te o que então te disse que «pode ser que me engane eu, porque a todos os mais dos homens lhe parecem
melhor as suas cousas que as alheias», mas acabaste por verificar que estava certo.

 

Mas a razão por que vos escrevo esta carta, Ruano e Dimas Bosque amigos, não é para vos lembrar a forma como foi redigida esta nossa obra que muitos julgam tratar apenas das mesinhas e frutas da Índia, esquecendo que tratamos também do âmbar, do lacre, da pedra bezoar, dos diamantes e outros minerais. Falamos dos simples (toda a substância não misturada) e das drogas ou compostos (resultantes da mistura de vários simples), não de frutos ou plantas por fazerem parte de um horto, ou de um jardim, ou de um herbário, mas sim porque entram em
fármacos, com os quais nós tratamos os nossos doentes e, por vezes, também tratamos de outras coisas curiosas desta terra.

 

É, antes, para vos dizer em primeira mão, que a obra já recebeu o privilégio de proteção real para a sua impressão – privilégio esse, aliás, que é costume todos os livros, de qualquer outro assunto, também receberem. Proteção essa que procura evitar que outros imprimam ou copiem
aquilo que aqui se escreveu, ficando eles com o fruto do nosso trabalho. Durante três anos só os impressores que eu autorizar a podem imprimir nesta forma ou emendada. Esse privilégio foi hoje, dia 5 de novembro, assinado, em escrito que nos fez chegar Rui Martins, nesta cidade de Goa.

 

E eu, Garcia de Orta, que já não tenho saúde para esta carta escrever de minha própria mão, a ditei e mandei escrever por João Alves Dias, meu escrivão na puridade.

 

(Reprodução do Privilégio)